sexta-feira, 13 de abril de 2012

O "eu lírico"

O que é “eu lírico”?

Não adianta procurar o significado no dicionário – e nem mesmo em muitas gramáticas e livros de literatura.

O Eu-lírico é quando o poeta expressa sentimentos que não sentiu necessariamente, ou sentiu com uma outra intensidade da realidade, tratando-se então de não ser seu “eu” real, mas de um “eu” poético, ou lírico.

A palavra lírico origina-se de um instrumento musical antigo chamado lira. Este instrumento foi muito utilizado pelos gregos a partir do século XII a.C.

Chamava-se lírica toda canção que era executada ao som da lira, inclusive as expressões poéticas. Porém, o século XV chegou e houve um afastamento do som lírico e da palavra poética, que passou a ser declamada.

Podemos dizer que o eu-lírico é a voz que fala no poema e nem sempre corresponde à do autor. O eu-lírico pode ou não expressar as vivências efetivas do poeta, mas a validade estética do texto independe da sinceridade do mesmo.

Os heterônimos de Fernando Pessoa podem ser considerados Eu-líricos. Um narrador-personagem pode ser considerado um Eu-lírico. Um poema sendo “falado” por uma pedra é um eu-lírico.

O Eu-lírico é um recurso que possibilita a infinidade criativa dos sentimentos poéticos. Não limita as palavras em apenas um corpo, uma mente, um coração. Consegue pluralizar os sentidos. Assim podemos ser o que quisermos: uma pedra, um animal, uma árvore, outras pessoas. Explorar e incorporar sentimentos dos mais diversos como um ator faz com suas personagens.



Soneto XXVI      
                                    Manuel Bocage

Importuna Razão, não me persigas;
Cesse a ríspida voz que em vão murmura;
Se a lei de Amor, se a força da ternura
Nem domas, nem contrastas, nem mitigas:.

Se acusas os mortais, e os não abrigas,
 Se ( conhecendo o mal ) não dás a cura,
 Deixa-me apreciar minha loucura,
 Importuna Razão, não me persigas..

É teu fim, teu projecto encher de pejo
Esta alma, frágil vítima daquela
Que, injusta e vária, noutros laços vejo:.

Queres que fuja de Marília bela,
Que a maldiga, a desdenhe; e o meu desejo
É carpir, delirar, morrer por ela..

Ao lermos este soneto, inicialmente podemos pensar que o poeta está apaixonado. Mas, isto não é necessariamente verdade. Bocage poderia ter escrito esta poesia durante uma manhã tediosa, na qual pensou que a contradição entre razão e amor daria um belo poema..
O fato é que poetas conseguem escrever sobre sentimentos que nunca sentiram, ou que sentiram a muito. Isto porque, tendo um caráter de atemporalidade, a poesia não precisa corresponder a fatos temporais. A verdade ou sentimento que o poeta tenta passar não se restringe a um fato concreto. Antes, é um ideal eterno, que pode ser lido e compreendido em qualquer contexto. E para alcançar este grau de abstração, o poeta necessita de um “narrador” eterno e abstrato, que personifique uma pessoa ideal experimentando um sentimento ideal: o eu lírico..
 O eu lírico não passa do fruto de um processo de abstração, através do qual o poeta parte de um sentimento concreto, um fato que seja de alguma maneira real, até um sentimento abstrato. O poeta vai do estar apaixonado à Paixão em si, do ato de amar certa pessoa para o Amor. Na poesia, os sentimentos retratados são abstratos, no sentido em que não mais se relacionam com uma situação temporal, factual, e sim numa abstração de fatos (ou fatos abstratos) que induzem a um sentimento ou conjunto de sentimentos..
E apesar de a poesia poder realizar outras funções, como a narrativa, o objetivo final do poeta é fazer com que o leitor, enquanto lê os versos, possa sentir algo. Este sentimento pode ser o pretendido pelo poeta ou mesmo algo completamente diferente. Sem este processo de abstração, este “fazer o leitor sentir” não se realizaria, pois estaria condicionado a uma série de requisitos que, uma vez não preenchidos, não cumpririam a função poética..
Sem o Eu lírico, poesias não passariam de relatos de situações reais, que mesmo carregadas de emoções, não possuiriam um essência eterna. Na poesia acima, não é Bocage, mas o seu eu lírico que discute com a Razão (na poesia personificada) sobre o amor, até porque o poeta pode nunca ter um conflito interno entra o racional e o emocional. Mas, a ideia deste conflito nos faz perceber a contradição entre estes opostos e sentir o conflito de quem ama.


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