domingo, 12 de fevereiro de 2012

A realidade


A realidade brasileira – João Ubaldo Ribeiro

Já falei muito aqui e, porque acho que tenho razão, deverei falar mais, em como nós, brasileiros, somos originais, ao atribuirmos todos os nossos defeitos aos “brasileiros”. Nós, relutantemente (às vezes sob protesto, como acontece na Barra da Tijuca), somos brasileiros, mas não fazemos nada do que os brasileiros fazem. Os brasileiros são os maus políticos, a má polícia, a má administração, o trânsito horripilante, os ladrões e assaltantes, mas nunca nós. Se não fosse a má reputação que a palavra “sociólogo”, não sei por quê, vem adquirindo nos últimos anos, creio que seria um fértil terreno para o trabalho de um deles. (Agora, desculpem o parêntese longo, me ocorreu uma idéia: vai ver que o Homem está usando a Presidência para obter dados para o trabalho definitivo da sociologia do Brasil, nós é que não estamos entendendo o sacrifício dele, ter de bancar o Presidente, quando, na verdade, só está estudando para nos ajudar, já pensaram em como “Casa grande e senzala” vai ser metida num chinelo depois dele? — os brasileiros, além de tudo, são ingratos.)

Ao contrário de cada um de nós, o brasileiro, como se sabe, é um povo atrasado, ignorante e praticante de péssimos costumes. As mulheres brasileiras, como confirmará qualquer uma que visite o exterior, vão para a cama com quem lhes oferece um jantar, ou mesmo um Big Mac caprichado. Os homens brasileiros, todos de bigodinho e cabelo brilhantinado, são proprietários de fazendas com escravos, onde usam sombreiros, tocam tangos e seduzem gringas ingênuas, nos intervalos das sestas e dos golpes militares de duração suficiente para a auto-concessão de 96 condecorações por bravura em combate e a abertura de quatro ou cinco contas bancárias em paraísos fiscais. As crianças brasileiras vivem todas nas ruas, onde são metralhadas regularmente e, também nos intervalos, assassinam turistas ou se entregam sexualmente por 25 centavos de dólar ao dia. Os índios brasileiros (aliás, os únicos brasileiros de fato, a quem a terra toda deveria ser devolvida sob protetorado americano) andam nus, no meio das cobras que infestam as avenidas do Rio e São Paulo e as pessoas resfriadas os abordam constantemente, para tossir e espirrar na frente deles, matá-los de gripe e assim se apossarem de parte ainda maior dos bens que a Natureza lhes deu perpetuamente.
E por aí vai, não quero escrever outro romance agora, mas conto uma historinha de que fui figurante na semana passada, num supermercado desta vibrante capital onde resido. Aliás, aqui mesmo no Leblon. Fui comprar somente duas coisinhas, de modo que escolhi o caixa rápido, onde o máximo de compras permitido são dez ítens. O caixa rápido, contudo, não estava nada rápido. Sabe como é o brasileiro, o brasileiro não respeita essas coisas. Vê fila curta e vai entrando, sem querer saber se está ou não violando alguma norma. Mas esse não parecia ser o nosso caso. Uma senhora, negra e de aparência modesta, discutia com a caixa a respeito de um pacote de sal. Ao que tudo indicava, o preço colado no pacote não coincidia com o cobrado pela máquina e a senhora protestava, para revolta geral dos componentes da fila.
— Só podia ser negra mesmo — disse outra senhora, dois lugares à minha frente. — Só preto, para entrar numa fila rápida e ficar criando esse caso todo por causa de dois ou três centavos. Vai ver que ela mudou a etiqueta e agora quer pagar menos.
— É um horror — concordou um brasileiro ao lado, pois, como se sabe, ao contrário de nós, o brasileiro tem preconceito racial. — Negro é negro.
E a discussão continuava, com a fila já tão indignada que eu previa o momento em que iniciariam o linchamento da reclamante (e o meu também, porque, ao contrário dos conselhos recentes de uma autoridade policial, me poria em defesa da senhora negra), até que, finalmente, depois de idas e vindas de um atendente, concluiu-se que a reclamante tinha razão, embora a atmosfera de linchamento não se houvesse dissipado.
— Finalmente — disse a senhora autora do comentário racial. — Ela agora já economizou os dois tostões dela e a gente pode andar. Bem, então vamos lá, gente.
A que gente ela se referia? Às duas moças, por sinal não tão brancas assim, que agora eu via que a acompanhavam. Enquanto não chegava a sua vez, a senhora começou a dividir apressadamente seus pacotes, muitíssimos mais que os dez permitidos, com as outras duas. Claro, ela levara duas empregadas para o supermercado, a fim de comprar o que quisesse, sem desrespeitar o limite. Bastava que cada uma ficasse com uns dez em cada cesta e aí a caixa não ia poder fazer nada. A divisão nem precisou acabar, porque chegou a vez da esperta e, quando o limite dela foi alcançado, ela passou o resto para a cesta da seguinte, a qual, por sua vez, fez a mesma coisa com a que lhe vinha depois. E contentes partiram, não sem que eu tivesse a chance de sair logo depois delas. Na verdade, iam na mesma direção que eu, e desfrutei da oportunidade de avaliar o semblante austero daquela senhora antes tão indignada, mas então já um pouco aplacada pela solução do problema que tanto a afligira. Uma verdadeira cidadã, disposta a exercer seus legítimos direitos. Ficamos até parados no mesmo sinal de trânsito, esperando que abrissem passagem para nós. O sinal abriu, um caminhão avançou e quase atropela os quatro. Ela olhou para mim e desabafou:
— Que coisa horrível, a gente não pode confiar nem no sinal de trânsito. Este país é assim mesmo, ninguém obedece à lei, ninguém faz nada direito! O senhor viu?
— Vi, sim, minha senhora — disse eu. — É o brasileiro.
— É mesmo, sou obrigada a concordar — respondeu ela. — Infelizmente é a realidade brasileira. O brasileiro não tem jeito, é a triste verdade.

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